Nos tempos do vinil (parte I)



O LP não foi apenas um suporte, mas uma forma artística


Por: FAGNER ALVES




Há décadas fala-se do fim do livro, e as livrarias não desapareceram. Lojas de discos e CDs sumiram quase de improviso, ou se transformaram em revendas de eletrodomésticos e informática, e pouco se comentou sobre o assunto. Artistas de sucesso lançam suas composições diretamente nas lojas virtuais e toda música, ou quase, já está disponível na rede. A mediação do disco gravado tornou-se desnecessária, e ninguém parece se preocupar muito com isso.
À primeira vista, o descompasso é curioso: na geografia de uma casa, na construção da personalidade, livros e discos foram, por gerações, objetos gêmeos. Para muitos de minha idade, casar significou juntar livros e discos, separar-se significou dividi-los: “Levou um bom disco de Noel”; “Devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu” – é o que nossos discos dizem. Entrando na casa de alguém, busco instintivamente as lombadas dos livros e as capas dos discos para saber se terei assunto, se poderemos ser amigos. No entanto, parece que estamos muito mais dispostos a renunciar aos discos do que aos livros.
Uma explicação pode estar na antiguidade do hábito. Mesmo deixando de lado as tabuinhas sumérias e os rolos de egípcios, gregos e romanos, o livro – feito de folhas recortadas e encadernadas, como hoje o conhecemos (o códice, na terminologia dos paleógrafos) – tem quase 2 mil anos: apareceu por volta do século II da era cristã e, sendo mais compacto que o rolo, era mais fácil de transportar e armazenar, capaz de conter muito mais texto. A mudança de formato aumentou sua circulação e desempenhou papel fundamental na cristianização do Império Romano.

Originalmente, bíblia era um nome plural, que significava “os livros”. E indicava, de fato, o conjunto dos rolos que cada sinagoga ou igreja guardava em seu armário. A lista dos livros sagrados não era igual para todos: muitos textos, hoje considerados apócrifos, podiam ser incluídos; outros, hoje essenciais, nem sempre constavam. Cada bíblia tinha sua coleção: afora o Pentateuco, presente em todas, elas podiam incluir só um livro de Isaías, mas dez Apocalipses; ou todas as cartas de Paulo, mas não os Atos dos Apóstolos; e assim por diante. A redução dessas bibliotecas a um único volume, ou poucos, levou ao estabelecimento de um cânone: Evangelhos, só quatro; Apocalipse, um; Macabeus, livros de Tobias e Judite – entram ou não entram? Foram discussões que duraram séculos e ainda deixaram sequelas (algumas bíblias protestantes não consideram livros que a católica inclui).
Quando uma estante inteira é transformada em obra única, torna-se necessário instituir uma ordem: a bíblia hebraica passa a ser organizada de maneira a marcar um progressivo afastamento – os livros de Moisés, que falava com Deus “face a face”; os dos profetas, que só o ouviam “por enigmas”; e finalmente o homem histórico (Reis, Crônicas etc.), que só entende a vontade de Deus quando é punido. Nas bíblias cristãs, os profetas foram deslocados para o fim do Antigo Testamento, para que anunciem o Novo.
Como livros diferentes passaram a ser encadernados em um só tomo, foi preciso distinguir onde acabava um e começava o outro – daí as iluminuras no topo da página ou de página inteira e as letras capitais. Os rolos também podiam conter ilustrações, mas sua relação com o texto era mais frouxa, incidindo num trecho aleatório do papiro ou pergaminho desenrolado pelo leitor. No livro encadernado, ao contrário, a leitura passa a ser ritmada pelo ato, tão simbolicamente denso até hoje, de virar a página, e cada página tem sua configuração. Além disso, o livro tem capa, e a capa é a cara dele. Os rolos eram todos iguais, era preciso estendê-los para reconhecer seu conteúdo.

Mudou também a postura: em geral o rolo é lido de pé, demanda um gesto amplo para que uma porção razoável de texto seja descortinada. Lê-se em voz alta, diante de um público, se não real, pelo menos presumido. O rolo é público por natureza, e conseguiu resistir à concorrência do códice até hoje, em alguns nichos, por seu caráter ritual ou cerimonial: diplomas, anúncios solenes, ofícios eclesiásticos. O códice, ao contrário, é compacto e pesado: é feito para ser apoiado numa mesa, numa estante, sobre os joelhos. Para lê-lo, nos debruçamos. O costume de ler em silêncio, que ainda surpreendia Agostinho quando o observava em Ambrósio, e que Borges comenta no ensaio “Do culto dos livros” (em Outras Inquisições), está provavelmente ligado à difusão dos códices.
Por tudo isso, é leviano dizer que uma biblioteca inteira cabe num iPad. O que cabe são textos, não livros. A telinha é muito mais parecida com o rolo do que com o códice: os caracteres correm potencialmente ao infinito, ainda que seja mantida a divisão por páginas (mais por sobrevivência de um hábito do que por necessidade do meio eletrônico). Na telinha, o livro não tem capa ou aparência própria. Seu uso exemplar não é a leitura corrida, mas a busca da palavra-chave, que atravessa o texto em todas as direções. A escrita, nela, é sempre fragmento. O texto permanece um fenômeno virtual, efeito ilusório e superficial de uma estrutura lógico-matemática que só o computador lê, e nós não enxergamos. Ele está em lugar nenhum. O texto do livro, ao contrário, está dentro dele, na estante, mesmo que não o leiamos. Entretém conosco uma relação que não depende de um uso imediato. Em outras palavras, no texto eletrônico o pensamento não se encarna, não convive conosco como objeto extenso, material – como nós, sujeito a dobras, descolamentos e manchas de café. Talvez seja por isso que não conseguimos renunciar ao livro: não queremos dispensar a identidade espiritual e material que ele promete há milênios. Carregar o pensamento nas mãos, fazer com que ocupe um lugar específico: é isso que o livro permite, e talvez por isso as livrarias não desapareceram.
O disco, ao contrário, surgiu apenas no século XX. Contudo, ele se enraizou tão profundamente em nossa experiência cotidiana que adquiriu, por um tempo que parece prestes a se esgotar, estatuto comparável ao de seu colega milenar. Talvez porque, ao corporificar o som, o disco complete a materialização do pensamento que o livro iniciara há tanto tempo, transferindo para um objeto as ressonâncias afetivas que, no caso da página escrita, ainda exigiam a atuação de um falante. A partitura nunca foi propriamente um livro, nem sequer da maneira que uma peça teatral pode sê-lo. O texto de um drama se presta a dois usos: pode ser encenado, mas também pode ser lido como poema ou novela. A partitura nunca dispensa a execução, nem que seja apenas mental.
Antes do advento do disco, uma obra musical, mais que uma partitura ou uma sequência de sons, consistia num acontecimento performático. A escuta era muito mais flutuante, e os limites de cada peça mais indeterminados. O que valia era o evento como um todo. Não havia música sem que alguém se sentasse ao piano ou gesticulasse no palco; não havia música sem ingressos, convites, roupas adequadas. Apenas no final do século XIX, quando as temporadas de concertos se firmaram definitivamente, introduziu-se o hábito de apagar as luzes na plateia durante a apresentação. Até a música doméstica estava ligada a algum tipo de rito familiar.

Uma encenação de ópera era replicada por vinte ou trinta dias seguidos, se tivesse sucesso, e o melômano assistia várias vezes, quando não todo dia. Em compensação, dificilmente ouviria a mesma peça de novo, no futuro. Para a música instrumental, sobretudo a de orquestra, as oportunidades eram ainda mais esporádicas: um apaixonado, mesmo o mais dedicado, teria ocasião de ouvir a Nona de Beethoven, por exemplo, duas ou três vezes na vida, se tanto. Os profissionais compravam a transcrição para piano para estudá-la em casa. Para os outros, é provável que restassem apenas fragmentos de melodia e a lembrança de uma emoção efêmera – além, naturalmente, das resenhas publicadas nas gazetas.
O disco extraiu desse conjunto confuso de sensações e acontecimentos apenas o som, e o colocou num objeto que podia ser levado para casa e escutado à vontade, com qualquer roupa, em qualquer atitude. É um duplo isolamento: do som, em relação à performance; do ouvinte, em relação ao rito social da escuta. O disco inaugura a escuta solitária, no recanto do próprio quarto – análogo, nisso também, ao códice em relação ao rolo. No entanto, a escuta de um disco nunca será tão solitária como a leitura de um livro: o disco faz barulho, e esse barulho nos envolve, mesmo que não seja ouvido por mais ninguém. O livro se dirige à mente; a música precisa passar pelo ouvido, envolve o corpo. Pelo corpo, o som do disco remete a um espaço comum – da festa, do rito, da marcha. Há uma sociabilidade na música que o disco não abole. Ele apenas a comprime, a torna portátil, permite que seja fruída sem a presença de alguém.
Não é só um conhecimento mais aprofundado que se oferece ao apaixonado não especialista, incapaz de ler partituras complexas. É outro tipo de conhecimento, capaz de abordar o som em si, e não sua tradução em notas. Agora é possível comparar timbres, andamentos, granulações da voz, as respirações com que o intérprete escande a melodia. O mais importante, porém, acredito seja a experiência da repetição: pela primeira vez na história era possível dominar o tempo, obrigá-lo a percorrer o mesmo caminho inúmeras vezes.


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