A
leitura também pode ser reiniciada, mas isso é porque o livro transforma o
tempo da fala no espaço da página, coloca-o no plano da simultaneidade ou da
eternidade, em que tudo está presente ao mesmo tempo (mais uma causa de suas
ressonâncias religiosas). Quanto ao filme, que surge no mesmo momento que as
gravações, ele também possui, como o disco e diferentemente do livro, uma
duração temporal estabelecida. Porém, é fruído num espaço público, em que não
nos é concedido retomar à vontade um momento anterior da narrativa. Mesmo com a
difusão do filme doméstico, que aconteceu muito mais tarde, o ato de rebobinar
permanece uma operação muito mais trabalhosa do que recolocar a agulha no ponto
certo; só com o advento do DVD os filmes foram divididos em cenas, nos moldes
das faixas dos CDs. Finalmente, o filme não é só representação do tempo, mas
também do espaço, enquanto a música, uma vez extraída pelo disco de seu
contexto performático, tornou-se tempo puro.
O
próprio movimento do vinil na vitrola é promessa de uma conciliação entre o
tempo periódico e o linear. A evidência desse movimento talvez compense em
parte o fato de o disco ser um texto que precisa de uma máquina para ser
decifrado, como mais tarde as memórias digitais. Os primeiros registros
fonográficos eram sobre cilindros de cera, que o sulco percorria em parafuso. O
disco é uma projeção no plano desses cilindros, uma anamorfose: para que o
tempo da gravação se mantenha constante, os anéis iniciais, maiores e
percorridos mais rapidamente, devem conter a mesma informação dos finais, menores
e mais lentos. A ondulação do sulco se torna cada vez mais estreita. A agulha
anda em círculos, mas avança. O tempo aperta, até que resta apenas o ruído
branco da agulha presa entre o fim da música e a etiqueta.
A
experiência desse movimento espiralado torna redundantes os antigos da capo,
mas, por outro lado, nos faz mais sensíveis a outro tipo de repetição. O disco,
e o rádio junto com ele, inaugura a experiência da música de fundo, que toca
enquanto fazemos outra coisa, ou pensamos outra coisa. Como Luís XIX, temos uma
música para o desjejum, uma para o almoço, outra para o fim da tarde. Elas
devem correr homogêneas, sem grandes acontecimentos. A escuta deixa de ser um
momento excepcional para se tornar uma espécie de duplo, ou sombra, de qualquer
momento. Há uma vasta literatura denunciando esse hábito como banalização, fim
da experiência espiritual da música. Mas de experiência se trata, e quem ouve
um disco enquanto cozinha não faz necessariamente uma escolha menos meditada de
quem compra o ingresso para um concerto.
De
resto, formas sofisticadas de composição já exploraram esse aspecto – o
minimalismo musical de modo mais explícito (Steve Reich, Philip Glass, La Monte
Young, Terry Riley). O que as obras minimalistas fazem é sobrepor repetição
performática e repetição mecânica. Se não houvesse diferenças perceptíveis
entre as duas, o resultado seria parecido com o de um disco riscado. Mas há,
porque essas músicas são executadas, em geral, com instrumentos tradicionais,
ou, em todo caso, demandando algum tipo de ação pelos intérpretes. É uma
repetição, portanto, que passa junto com o tempo, enquanto no disco riscado,
que repete sempre o mesmo sulco, é o próprio tempo que emperra (daí,
provavelmente, a sensação de angústia). Quando gravadas, as composições
minimalistas (as de Steve Reich, sobretudo) não se submetem à reprodução
mecânica, mas dela fazem emergir uma sensação aguda e especialmente concentrada
da passagem do tempo. Como quase nada acontece nele, o tempo se revela de
maneira mais patente, não como círculo, mas como espiral. Mesmo quando
executada ao vivo, toda música minimalista me parece embutir a experiência do
disco.
Em
outro sentido, a música pós-weberniana, que não preza muito a repetição (embora
haja exceções, como Stimmung, de Karlheinz Stockhausen), torna a escuta
repetida uma mediação necessária: como não utiliza temas e motivos condutores,
nos quais o ouvinte possa se pautar para acompanhar a sucessão dos
acontecimentos, a compreensão costuma se dar, num primeiro momento, pela estrutura
geral, a mais evidente e perceptível, para progressivamente descer aos
detalhes, audição após audição. Inversamente à tradição romântica, é a
macroestrutura que gera a microestrutura, e não vice-versa. A apreciação ao
vivo não é, em geral, a mais satisfatória, a não ser do ponto de vista da
espacialização do som e dos recursos gestuais.
A
única música contemporânea que não funciona em disco é a de John Cage e
seguidores. Uma poética inteiramente baseada na imprevisibilidade do
acontecimento não pode aceitar que o acontecimento se torne objeto, e repetir
um acontecimento imprevisível não faz muito sentido. Os próprios limites-padrão
de duração do disco, se fornecem à música minimalista à medida que, no caso
dela, só pode ser acidental, nas gravações de Cage se chocam contra um material
que, por sua própria natureza, não aceita limites preestabelecidos. Na verdade,
Cage é um mestre da escuta, mais que da composição musical: aponta para um
mundo já prenhe de sons – qualquer barulho, silêncio, radinho de pilha. Escutar
um disco dele num cenário doméstico só faz sentido se for para apreciarmos
melhor, graças a ele, os outros sons da casa.
Junto
com isolamento e repetição, limite é o terceiro elemento fundamental da
experiência do disco – talvez o mais importante, do ponto de vista de sua
evolução. O espectador do século XIX entrava no teatro de ópera às seis da
tarde e saía após a meia-noite, e nesse ínterim não só escutava música, como
passeava no saguão, conversava, flertava e fechava negócios, tomava sorvete e
jogava sinuca. Mesmo assim, é claro, havia horários a serem respeitados: a
música acompanhava a duração dos ritos e das ocasiões sociais, e de suas
partições internas. Wagner se deu mal, na estreia do Tannhäuser, em Paris,
porque colocou o balé no início do primeiro ato, quando os fãs das bailarinas
ainda não haviam chegado do Jóquei. Verdi, mais experiente, cortou longos
trechos de Don Carlos, inclusive uma cena inteira, bonita e complexa, para que
a ópera não acabasse depois da partida do último trem para a banlieue. Já
estamos na época em que o teatro de ópera tentava se adequar aos ritmos da
cidade moderna. No auge do gênero, Mozart não tinha esses problemas. Mas, em
suas peças teatrais, intermináveis para os padrões da época, ele era capaz de
inserir duas palavras de diálogo para dar tempo ao clarinetista de trocar de
instrumento (final do Don Giovanni), ou mudar a ordem das cenas para permitir
ao mesmo ator interpretar duas personagens (ato III de As Bodas de Fígaro). Mas
enfim, não havia nada de muito rígido, que não pudesse ser negociado e
resolvido pelo métier.
A
duração do disco, ao contrário, é um limite cronométrico, inegociável e, nos
formatos mais antigos, cruel: não mais de três ou quatro minutos, para os
discos em goma-laca de 78 rotações. Era preciso interromper cinco ou seis vezes
a escuta para virar os discos que traziam uma sinfonia, relativamente breve, do
século XVIII; e o exercício se tornaria extenuante para uma composição do
romantismo tardio. Mesmo para a música popular mais desenvolvida, como o jazz,
esses limites são demasiado estreitos: as gravações antigas dos conjuntos de
Louis Armstrong, por exemplo, soam como meras amostras daquilo que esses
músicos extraordinários seriam capazes de fazer ao vivo, e com certeza faziam.
A
duração limitada dos primeiros discos teve, a meu ver, duas consequências: a
primeira é o predomínio do gênero canção. Três minutos é um tempo muito curto
para desenvolver uma estrutura suficientemente rica no campo da música
instrumental, mas não para estabelecer uma relação satisfatória entre texto e
melodia. Certamente, foram as exigências de gravação que impuseram o padrão de
primeira parte, segunda parte e da capo sobre todas as outras formas de canção,
mas essa já era a forma mais comum do Lied, da ária de ópera e de muita
tradição folclórica. A maioria dos Lieder de Schubert e de Schumann durava mais
ou menos três minutos, e era baseada no princípio de que a linha melódica
deveria se adequar perfeitamente ao sentido poético e não poderia ser
desenvolvida muito além dele, sob pena de perder a correspondência com o texto.
Nesse sentido, Schubert não trabalhava de forma muito diferente de Paul
McCartney ou Chico Buarque – para todos os outros gêneros musicais, as
diferenças entre música erudita e música popular são bem mais marcantes. Enfim,
de todos os formatos tradicionais, a canção romântica é a que mais facilmente
podia se adequar às exigências do novo meio. A ópera, o gênero então mais
popular, também foi segmentada em trechos curtos, na prática canções, e nessa
veste determinou o surgimento do primeiro grande star do disco, Enrico Caruso.
Por outro lado, talvez não seja por acaso que um dos maiores instrumentistas de
jazz dessa época, Armstrong, tenha se tornado mais popular como cantor do que
como trompetista. Houve um “século da canção” (para retomar o título de um
livro de Luiz Tatit) porque houve um século do disco.
A
segunda consequência da curta duração do disco em 78 rotações foi a simbiose
com o rádio, por toda a primeira metade do século. A difusão radiofônica
sustentava a venda dos discos, e vice-versa. O rádio não permitia repetir a
escuta, mas, contornando o limite de duração, punha em circulação um repertório
muito mais vasto. Grandes rádios passaram a manter grandes orquestras, como a
norte-americana NBC, regida por Toscanini, e a realizar uma programação regular
de concertos em seus estúdios. Foi pelo rádio que a música erudita se tornou,
entre as duas guerras mundiais, um fenômeno relativamente popular. Mas a música
popular também se beneficiou das orquestras e arranjadores que as
radiodifusoras mantinham em seus programas de auditório.
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