Para
o ouvinte acostumado às formas tradicionais de socialização musical, o rádio
deveria representar uma novidade menos radical, mais próxima ao evento musical
oitocentista: transmitia um acontecimento em ato, ainda que a distância.
Certamente, perdia-se a reciprocidade: o evento chegava até a casa do ouvinte,
mas o ouvinte já não estava no concerto. É provável que imaginasse as cantoras
perfeitamente maquiadas e penteadas, como nas fotos das revistas, os regentes
de fraque e os instrumentistas de smoking, mesmo que isso já não fizesse
sentido; ele, porém, podia ficar de pijama. Havia intervalos e, como num saguão
de teatro, havia também quem contasse histórias e piadas, e recomendasse
produtos. Tudo ocorria como se o rádio unificasse as casas: na transmissão
radiofônica, sempre há alguém do outro lado do aparelho (desse ponto de vista,
o rádio é um ponto médio entre o disco e o telefone), e outros do mesmo lado,
diante de outros aparelhos. Dos três aspectos fundamentais do disco –
repetição, limite de duração, isolamento –, o rádio tornava impossível o
primeiro, eliminava o segundo e relativizava o último. Funcionou como uma
espécie de câmara de compensação, filtrando os hábitos musicais do século XIX
para a escuta do século XX. Para que o disco alcançasse plena autonomia como
forma de expressão, no entanto, era necessário mais um passo.
Os
primeiros discos de longa duração, em vinil (long playing), foram lançados nos
Estados Unidos em 1948: mais de vinte minutos de cada lado, suficientes para
uma sinfonia média do século XVIII. Até nas grandes obras românticas, raramente
um único movimento supera essa extensão. Quanto à música popular, a vantagem
não foi apenas a possibilidade de desenvolver composições mais complexas: mesmo
respeitando a duração já tradicional de três ou quatro minutos para cada peça,
agora era possível montar as faixas numa sequência preestabelecida, segundo
escolhas refletidas. Analogamente ao que aconteceu na passagem do rolo ao
códice, uma série de obras distintas se tornou uma só. Alguns LPs lançados na
década de 50 são verdadeiras declarações de poética, como as Canções Praieiras,
de Dorival Caymmi, já em 1954. Entre os jazzistas, Miles Davis foi mestre em
pensar o LP como uma obra unitária (Kind of Blue, Sketches of Spain etc.), mas
foi seu antigo parceiro, John Coltrane, quem explorou todas as possibilidades
que o novo formato oferecia, como nas longas improvisações sobre um único
acorde de A Love Supreme (1965). De resto, o disco em vinil possibilitava
também a revisão e a reorganização do repertório anterior em conjuntos que
permitiam reconhecer sua grandeza: Cole Porter e Irving Berlin se tornaram
clássicos da música popular americana graças, sobretudo, aos songbooks de Ella
Fitzgerald. Algo parecido aconteceu no Brasil, primeiro com as releituras de
João Gilberto, depois com os cantores e compositores da MPB.
Mas
não foi apenas o indiscutível avanço técnico que fez do disco em vinil o agente
de mudanças revolucionárias: foi sua associação com a nascente sociedade de
consumo. A posição de cada indivíduo num contexto social passa a ser
determinada pela posse de certos objetos. Nenhum deles era tão poderoso quanto
o disco para encarnar formas específicas de sociabilidade, porque os discos já
eram, como vimos, sociabilidade objetivada. As gerações que cresceram nas
décadas de 50, 60 e 70 (a época de ouro dos LPs) basearam suas escolhas
existenciais nos discos. Não apreciavam jazz, pop, folk ou rock: eram jazz,
pop, folk ou rock. As estrelas da música popular tinham autoridade de poetas,
carisma de líderes revolucionários e charme de atores de Hollywood.
Nunca,
talvez, desde a época de Beethoven, a música contara tanto. Os enormes lucros
que as empresas alcançaram permitiram gravações sempre mais sofisticadas,
sessões mais prolongadas e boa dose de experimentação: num mercado em
transformação muito rápida, era melhor arriscar um fracasso lançando um disco
muito ousado do que ficar para trás. Capa, encarte, textos de acompanhamento,
estratégia de lançamento, roupa e penteado dos músicos: tudo passou a ser
relevante. As capas em particular, com seu formato quadrado de 30 por 30
centímetros, foram um campo especialmente favorável a uma diagramação criativa.
O disco já não era mais um som: era um mundo para o qual concorriam diferentes
linguagens, um sistema de códigos, um modelo de vida.
Embora
não estivesse entre os escopos primários da indústria discográfica, a música
erudita contemporânea também se beneficiou dos enormes avanços das técnicas de
gravação. Além de sobrar algum espaço para produções de nicho nos estúdios mais
equipados, as rádios continuavam poderosas, com suas orquestras e seus estúdios
de eletroacústica, que se dividiam entre experimentação musical e produção de
sonoplastia para os dramas radiofônicos – sistemas bem desenvolvidos de
difusoras públicas desempenharam, nesse campo, uma atuação fundamental,
sobretudo na Europa. A passagem de uma cultura musical centrada no concerto
para uma centrada na gravação permitia misturar fontes acústicas e eletrônicas;
criar, pelos artifícios da superposição, conjuntos improváveis, às vezes
monumentais, que seria muito difícil ou excessivamente caro reunir fisicamente;
e executar passagens árduas e insólitas com uma precisão quase impossível ao
vivo.
Foi
nessa época e por esses meios, muito mais do que pelas vanguardas do começo do
século XX, que a música contemporânea alcançou sua plena autonomia em relação à
tradição clássico-romântica, quanto a recursos, formas e modalidades de escuta.
Foi dessa época, provavelmente, a melhor música erudita do século. Mas é dessa
época também o melhor jazz, do bebop ao free; quase todo o rock relevante, de
Elvis Presley aos Clash; a bossa nova e o auge da MPB; Janis Joplin e Maria
Callas; a melhor Ella Fitzgerald e o melhor Frank Sinatra. E, num lugar que é
só deles, são dessa época os Beatles.
O
momento em que os Beatles decidiram, no verão de 1966, abandonar as
apresentações em público para se tornar uma banda de estúdio marca o ápice da
era do disco. Segundo o filósofo Søren Kierkegaard, não podia haver ópera
melhor que o Don Giovanni de Mozart, porque Don Giovanni era a personificação
plena do significado musical: sem caráter próprio, ele só pode buscar uma definição
na próxima mulher (como a música na próxima nota), até ganhar um sentido na
catástrofe (ou cadência) final. No Don Giovanni, o melhor dos compositores
teria encontrado o mais musical dos assuntos.
Nesse
exato sentido, não poderá haver disco melhor que Sgt. Pepper’s, porque a Lonely
Hearts Club Band é a personificação perfeita do que o meio significou, no auge
de sua potência. A banda não existe fora do disco, ela é o disco, assim como
não existe fora do disco o público que aparece na capa, e que se propõe como
rede de referências para o outro público que está fora dela, mas que adquirindo
o disco participa da mesma comunidade: indivíduos disparatados, mas todos de
alguma forma excepcionais – de Karl Marx a Marilyn Monroe, incluindo os
próprios Beatles já imortalizados como figuras de cera –, todos prensados num
espaço apertado e festivo, mas de uma festividade ironicamente provinciana e
ingênua. É importante que seja apertado: o som também o é. Extremamente
elaborado, exuberante, feito de inúmeras superposições e distorções, ele também
seria impossível ao vivo: não existe senão no disco.
Por
incrível que pareça, os Beatles e seu arranjador e diretor de estúdio, George
Martin, só dispunham na época de uma mesa de quatro canais. Gravados os quatro
canais, era necessário fundi-los num só para liberar os outros três, e a
operação era repetida até as possibilidades se esgotarem. O resultado é que na
escuta as sonoridades se contaminam, mesmo mantendo cada uma sua
individualidade. Colam-se uma à outra, como as personagens da capa. Como elas,
são singulares e inconfundíveis: uma cítara, uma tuba, um piano honky-tonk, uma
orquestra de cordas, e ainda uma galinha, um cachorro, pessoas batendo palmas.
Uma multidão que percorre o disco inteiro, tanto nas faixas mais espalhafatosamente
públicas (Being for the Benefit of Mr. Kite!), quanto naquelas mais estranhas e
aparentemente solipsistas (Fixing a Hole). A canção que mais exigiu
superposição de canais é aquela à primeira escuta mais despretensiosa: When I’m
Sixty-Four.
O
ponto culminante desse processo de acumulação se dá na última faixa, A Day in
the Life– não no encerramento do concerto da banda, que acontece na faixa
anterior, mas num hipotético dia seguinte, dedicado a ocupações rotineiras (ler
jornal, assistir filmes, ir ao trabalho). No fim da primeira parte, a
superposição em crescendo de uma quantidade aparentemente inumerável de
instrumentos cria progressivamente algo muito próximo a um ruído. Esse novelo
sonoro foi elaborado por George Martin, que com certeza conhecia as
experiências de adensamento que estavam sendo conduzidas na mesma época por
compositores eruditos (György Ligeti, a escola francesa da música espectral,
além de Karlheinz Stockhausen, que, aliás, está incluído na capa); mas a ideia
de contrapor a essa sofisticada massa sonora a pequena catástrofe sonora
cotidiana de um despertador foi de John Lennon. Após uma segunda aparição do
mesmo elemento, o acorde de piano dramático e bastante saturado, que encerra a
canção, vai se dissolvendo em seus harmônicos, até alcançar por alguns segundos
frequências inaudíveis para o homem (Especially to amuse your dog, leio no
encarte da edição que estou consultando). Finalmente, fragmentos indecifráveis
de uma conversa encerram o disco. Como, nesse ponto, o sulco do vinil de Sgt.
Pepper’s não continua sua marcha em espiral em direção ao centro, mas se fecha
em círculo, esse fragmento sem sentido continua ao infinito, até alguém
levantar a agulha (nas edições recentes em CD é impossível manter essa
particularidade, que foi substituída por uma banal dissolvência). Assim, tanto
no registro das alturas, como no das durações, o disco literalmente não acaba.
É ilimitado em tempo e em frequências.
Há
certa incontinência nesse ir sempre mais além, lambuzar-se de sons, sobrepor
imagem a imagem, e ao mesmo tempo comprimir-se num espaço apertado,
constantemente ombro a ombro com dezenas de outros (figuras ou sons). Como se o
disco fosse um universo de relações massificadas, porém excepcionais, um mundo
introjetado ou uma interioridade em erupção. De fato, massificação e
singularidade se tornam nele princípios conciliáveis. Os movimentos sociais da
década de 60 não foram anticonsumistas, muito pelo contrário: identificaram-se,
sob muitos aspectos, com a posse e o uso de objetos específicos – roupas,
discos, cartazes, drogas. O consumismo daquela década foi capitalista no
sistema, mas anticapitalista no desejo. Ilimitado e inesgotável, portanto,
utópico. Nesse sentido, o LP em geral, e Sgt. Pepper’s em especial, foi a
expressão mais plena da dialética interna à sociedade de consumo. A obra-prima
dos Beatles não foi apenas o disco dos discos. Foi a mercadoria no seu maior
esplendor, e no mais alto grau de reflexão e autoconsciência.
Depois
veio o compact disc, que deveria potenciar o que o vinil já tornara muito
poderoso. Mas algo deu errado. É indicativo, para começo de conversa, que tenha
mantido ou aumentado pouco a duração do LP, embora pudesse conter muito mais
informação. Até do ponto de vista gráfico, capas e encartes de CDs não passam,
na maioria dos casos, de capas e encartes de LPs reduzidos ao tamanho de bulas
de remédios. Quando tentam fugir disso, transformam-se em pequenos livros.
Parecem incapazes de desenvolver uma visualidade autônoma. Hoje, quando o CD
está desaparecendo, é fácil reconhecer que não se alforriou do LP. Mais difícil
é identificar as causas.
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