Nos tempos do vinil (parte IV)



O CD é um meio barato e muito fácil de reproduzir. A cópia caseira do LP era a precária fita cassete; a do CD é outro CD da mesma natureza do original. Os meios de gravação também foram muito barateados: hoje em dia, qualquer um pode ter em casa, por um preço razoável, recursos muito mais poderosos do que aqueles de que os Beatles dispunham na década de 60. E o mais importante: a diferença entre uma gravação caseira e uma profissional vai se tornando progressivamente imperceptível. À primeira vista, esse é um fator positivo: muito mais música pode ser produzida, de maior qualidade e mais democraticamente. Mas a cadeia que leva ao produto final é demasiado longa, dispersa e anônima. Depende em grande parte de recursos já programados que o mercado produz a jato contínuo.

As técnicas de estúdio da época de ouro do LP tinham algo de artesanal: soluções sonoras eram inventadas na hora ou experimentadas ali pela primeira vez. Os meios analógicos ainda podiam ser manipulados de forma bastante semelhante aos instrumentos – mudando a posição dos microfones e dos alto-falantes, distorcendo, saturando. A tecnologia digital, ao contrário, tende a ser um sistema de múltipla escolha, em que o músico é chamado a optar entre um leque muito amplo de possibilidades já fornecidas por softwares. A criatividade não desaparece, mas está muito mais na combinação de soluções já dadas do que na invenção de soluções novas. Os programadores que fornecem novos recursos não têm responsabilidade direta sobre o resultado musical da gravação; por outro lado, os músicos não têm, em geral, conhecimentos de informática suficientemente aprofundados para ir até as raízes do som digital. A figura do grande arranjador e diretor de estúdio – gente como George Martin e, um pouco mais tarde, Quincy Jones – tende a desaparecer. Hoje não faria mais sentido uma gravadora investir cinco meses de trabalho e 700 horas de estúdio num único disco, como foi o caso de Sgt. Pepper’s. Estamos próximos da época em que todo mundo poderá produzir sua própria música. Mas em que, justamente por isso, todas as músicas serão igualmente irrelevantes.
Em suma, a gravação digital não mais permite aqueles momentos de apropriação anárquica dos meios de produção industrial que constituem o sentido profundo das grandes produções musicais da época de ouro. A descrição de sessões de gravação dos discos de jazz, pop e rock mais famosos constitui quase um gênero narrativo à parte, que povoa encartes e documentários e, às vezes, adquire acentos faustianos: verdadeiras viagens ao término da noite (Exile on Main St, dos Rolling Stones); ou criação ex novo de um paraíso do entertainment (mas sem dispensar Mefistófeles: Thriller, de Michael Jackson). A gulodice sonora dos Beatles era a de uma criança que abre um brinquedo para ver o que tem dentro e depois o remonta de outro jeito. Mas dentro do meio digital não há nada que possa ser desmontado sem conhecimentos muito específicos.
A partir da década de 80, o consumismo perdeu toda valência revolucionária. Gostar de uma coisa ou de outra, adquirir uma coisa ou outra se tornou irrelevante do ponto de vista ideológico. Até os movimentos sociais recentes, quando existem, não parecem muito interessados em desenvolver uma estética própria, nem no vestuário, nem na produção gráfica (com poucas e esporádicas exceções), nem na música. Não geram novos comportamentos. Os movimentos da década de 60 eram exibidos, espalhafatosos. Os que se organizam em rede prezam a ocultação e o anonimato. Numa sociedade inteiramente filmada, a rebelião é fugir das câmaras (e, em revide, filmar o adversário).

Não espanta, então, que também a escuta da música, vencida a frágil resistência do CD, tenha se refugiado na rede. Mas isso tem consequências estéticas que é importante avaliar. A primeira é o fim da organização sequencial das faixas. Escolhe-se uma canção por vez, e o mecanismo de busca se encarrega de indicar outras composições próximas (“Se você gostou dessa música, também vai gostar dessa outra”). É um critério meramente estatístico, que não permite a construção de universos originais e complexos. Dificilmente, por esses meios, Dear Prudence seria associada a Revolution 9. Uma poética baseada na livre associação de estilos diferentes necessita de um ouvinte que escute a sequência inteira, ou pelo menos a reconheça como unidade. Mas a internet não tem contornos: nela, cada faixa emerge de uma totalidade indeterminada, e nela volta a afundar.
Em segundo lugar, com o encolhimento das vendas das gravadoras e dos recursos das rádios, a fonte principal de lucro voltou a ser o concerto ao vivo. No campo da música erudita, por exemplo, as encomendas de corpos estáveis tradicionais (orquestras sinfônicas, teatros de ópera, conjuntos de câmara com orgânico fixo) são mais uma vez determinantes para a carreira de um compositor. Mas isso significa compor para formações mais tradicionais ou, em todo caso, predeterminadas.
Quanto à música popular, a volta ao concerto ao vivo não é certamente um retorno a formas de socialização anteriores ao registro mecânico. O que é revertido para o palco é a visualidade do videoclipe, que originalmente era um veículo de divulgação do disco. Aquilo que era propaganda se torna produto, e a música tende a se tornar o jingle de si mesma. Madonna talvez tenha sido a primeira a orientar o sistema produtivo inaugurado por Michael Jackson para um privilégio absoluto da imagem performática sobre o conteúdo musical (em Michael Jackson, ao contrário, música, imagem e dança eram todas igualmente significativas).
Há ainda outro fenômeno, bastante curioso: o revival, por parte de um setor minoritário, mas culturalmente consistente da música popular, da gravação em vinil. Em si, o meio é claramente obsoleto, incômodo e caro em relação ao que a tecnologia atual coloca à disposição. Pode ser apenas uma moda passageira. Mas talvez essa retomada se justifique pela força de um prestígio e de uma qualidade considerados insubstituíveis, e, portanto, impermeáveis a qualquer avanço técnico – como o piano de cauda em relação a qualquer teclado ou a pintura a óleo em relação a qualquer plotagem. Quase sempre, um gênero ou uma técnica adquirem plenamente o estatuto de grande arte quando desaparece seu contexto original e sua própria necessidade produtiva. Talvez estejamos adquirindo a consciência tardia de que o LP não foi apenas um suporte, mas uma forma artística. Como a sinfonia e o romance.


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